Cidades que Educam, Cuidam e Inspiram: Da Infância em Billund à Velhice em Treviso

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Nas duas últimas semanas de maio de 2025, dois grupos de profissionais do Centro Comunitário de Tires – Instituto dos Afetos participaram numa mobilidade internacional promovida pelo programa ERASMUS+, com destino a dois países europeus: Dinamarca e Itália.
Na Dinamarca, representaram a instituição a Sandra Afonso, Diretora Técnica, e a Sandra Pereira, Coordenadora da Resposta Social Creche. Já na Itália, integraram a comitiva o Pedro Pinto, Coordenador do Serviço de Apoio Domiciliário, e a Ana Nicolau, Educadora de Infância responsável pelo Berçário.
Cada grupo teve o privilégio de conhecer instituições de referência, cujo trabalho se destaca pelo exemplo inspirador com que respondem às necessidades das comunidades onde se inserem.
 

A cidade de Billund, na Dinamarca, foi o primeiro destino.

Logo à chegada ao aeroporto de Billund, depararam-se com diferentes construções em Lego. Construções complexas, que fazem parte do espaço e não apenas como peças de exposição. A curiosidade de conhecerem uma nova forma de olhar o ensino e a comunidade começou a ganhar ainda mais força.
Billund é intitulada como “Capital das Crianças”, e é uma cidade onde o brincar é base para todo o processo de crescimento e desenvolvimento da criança, e onde o Lego e as peças do jogo são, efetivamente, parte e presença nos mais diversos espaços e contextos.
“Learning Through Play” (aprender através da brincadeira) – é um mote de importância ímpar e que, de forma única, consegue ser percebido e aplicado, não apenas em contexto pedagógico, mas também nas grandes empresas. Nessas empresas, é comum verem-se peças de Lego nos diferentes espaços, permitindo uma manipulação clara e sem preconceitos, principalmente quando grandes ideias precisam de surgir ou decisões importantes precisam de ser tomadas. Por outro lado, espaços criativos são também criados para que os adultos, nas suas pausas, possam ali explorar materiais e criar.
Esta forma abrangente de perceber a importância de brincar, explorar, criar, leva a que cada um de nós possa refletir sobre o impacto que estes espaços, na forma como estão organizados e pensados, e este tempo laboral, que permite momentos de “pausa criativa”, são, acima de tudo, espaços que respeitam a individualidade, que permitem tempo para refletir e que oferecem ferramentas para melhores resultados.
“WE DON’T STOP PLAYING BECAUSE WE GROW OLD; WE GROW OLD BECAUSE WE STOP PLAYING” – (George Bernard Shaw)
Durante os dias de visita, puderam visitar diferentes locais, como o Centro Cultural, o Município, a Lego House, a International School of Billund e a DRIVE – School of Motivation, testemunhando o impacto e as oportunidades que cada um oferece.
Em cada um deles, fica expressa a importância que é dada à criança e à sua capacidade de crescimento e desenvolvimento quando os espaços são projetados e pensados nela.
Brincar é intrínseco a qualquer criança, e cada uma tem, em si mesma, o superpoder de transformar esse grandioso gesto em aprendizagens.
Na cidade de Billund, todos os espaços e os serviços são pensados para que as crianças possam tornar-se mais criativas, ativas e que possam, através dessa liberdade, ir construindo a sua identidade.
Contudo, e para além da criança ser o agente e o motor para toda esta construção que se inicia no próprio indivíduo e que, consequentemente, influencia todo o meio em que se insere, a família, comunidade e a escola desempenham um papel importantíssimo em todo esse processo.
A International School of Billund desempenha um importante papel para a concretização desse objetivo e dessa visão, uma vez que toda a aprendizagem é construída para além das paredes da escola. À chegada, o ambiente tranquilo em que tudo decorre é notório e sentido por todos. As crianças participam em diferentes atividades, sob o olhar de adultos/educadores que lhes permitem uma liberdade de exploração e de pesquisa nas mais diferentes áreas. A esse sentimento de liberdade junta-se o de segurança e confiança. A International School of Billund tem como fundamento pedagógico esse valioso papel que a criança tem em todo o processo educativo – We Teach Children How to Think. Not What to Think.
A par desta escola e desta forma de ensino, visitaram também um outro projeto – DRIVE – School of Motivation. E aqui, na DRIVE, é-lhes apresentada uma nova forma de respeito e de olhar para a criança. Billund é a Capital das Crianças, mas perceba-se que é de TODAS AS CRIANÇAS. A DRIVE é uma escola que tem como foco a saúde mental das crianças. Essa saúde mental vai muito além de questões clínicas ou síndromes. É uma escola que acolhe todas as crianças que precisam de um olhar mais abrangente sobre as suas necessidades, onde o emocional tem uma influência gigante. A DRIVE, através de uma equipa capacitada na sua forma de olhar a criança no seu todo, oferece um ambiente estruturado e proporciona momentos de aprendizagem e crescimento emocional, físico, social e académico. Nesta escola, que baseia o ensino no respeito pela individualidade e tendo consciência de que existem ritmos e necessidades diferentes, deixa essa sua visão bem expressa – “WE NEVER SAY GAME OVER”.
Billund, sendo uma cidade plana, sem obstáculos estruturais, permite que o uso de bicicletas seja fácil e que essa rotina se aplique ao contexto escolar. É comum verem-se alunos acompanhados pelos professores a passearem de bicicleta, ao mesmo tempo que também os seniores/idosos são vistos nesse mesmo contexto, nas suas cadeiras de rodas, a usufruírem do exterior com a mesma acessibilidade e liberdade que as crianças. Nos passeios, é comum verem-se pintados traços, círculos, linhas retas ou curvas, num constante convite à brincadeira e à criatividade.


E se Billund é considerada a Cidade das Crianças, contrapondo, em Itália, a cidade de Treviso é uma cidade que respeita os Idosos/Seniores.

O I.S.R.A.A. (Istituto per Servizi di Ricovero e Assistenza agli Anziani), entidade pública que o segundo grupo de trabalho visitou, está inserida na cidade de forma exímia.
Com diferentes tipos de resposta, têm no idoso/sénior a base de todo o trabalho que desenvolvem – “RICORDI DI IERI, GESTI DI OGGI” (Memórias de Ontem, Gestos de Hoje).
As respostas que dão à comunidade passam por terem residências – Casa Albergo Salce, Residenza Anziani Città di Treviso, Residenza G. Menegazzi e Residenza R. Zalivani – que acolhem idosos/seniores com mais ou menos autonomia e graus de (in)dependência; BMSC – Borgo Mazzini Smart CoHousing – que são apartamentos individuais, onde cada pessoa tem o seu e, de forma completamente independente e autónoma, usufrui desse espaço; CSD – Centro Specialistico Demenze – onde a saúde mental é o centro da ação e onde os idosos/seniores têm um acompanhamento diário e diferenciado, tendo em conta as suas necessidades e características da doença; e têm ainda o SAD – Servizio Assistenza Domiciliare – em que, diariamente, se deslocam a casa das pessoas para garantir que têm as suas necessidades básicas asseguradas.
Todas estas respostas estão distribuídas por diferentes edifícios, em diferentes pontos da cidade. E o que chama a atenção é o facto de serem parte da comunidade, de fazerem parte sem serem “imposição”.
O grupo de trabalho teve a oportunidade de visitar algumas destas respostas, nomeadamente a entrada da Casa Albergo, dois apartamentos de Cohousing inseridos em locais distintos, e parte das instalações e espaço exterior da Residenza G. Menegazzi. Em todas as visitas e partilhas que foram feitas pelos técnicos, a privacidade e respeito pelos utentes foi sempre prioridade.
Nestas visitas, o respeito com que as respostas são pensadas é flagrante. Quem visitar a cidade, em momento algum identifica estes edifícios como “uma resposta social”. Têm em si mesmo o respeito pela identidade individual, a continuidade de fazerem parte de uma sociedade que muitas vezes se quer esquecer que ainda são “gente”.
Quando a visita, a dois apartamentos distintos de Cohousing, foi feita, este sentimento esteve bem presente. Junto à porta da rua, as campainhas são identificadas pelo nome de cada um. À entrada, um espaço comum que convida a ficar, pelo cuidado, harmonia e asseio com que se apresenta. Esse é um espaço de todos os moradores do prédio. Qualquer alteração, mudança mobiliária, precisa da voz de todos para que seja feita. Neste piso têm uma casa de banho perfeitamente adaptada e a lavandaria, onde cada um tem o seu dia para a higienização das suas roupas. Subindo, à porta de cada apartamento, a personalidade e identidade de cada um estão presentes, na forma como decoram esse pequeno espaço de entrada. E quando essa porta se abre, sorrisos sinceros de quem ali vive acolhem quem os visita, testemunhando o quanto ali são felizes. E felizes por continuarem a ser e a ter o que os dignifica. O respeito pela personalidade e a permissão para que cada um “construa a sua casa” alimenta o sentimento individual de que não se precisa de perder uma coisa para se ganhar outra. O jardim que acolhe cada edifício é um jardim de TODOS – moradores e comunidade. Nesta comunhão simples e grandiosa acontece a inclusão.
Toda a cidade é convidada a fazer parte. Apesar de existirem inúmeras atividades dirigidas aos idosos/seniores, elas acontecem dentro da cidade. Existe o convite para que se desloquem aos locais e façam parte. Por outro lado, o contrário também acontece e as portas abrem-se à participação da comunidade dentro das paredes de cada edifício.
Uma das senhoras que abriu a porta de sua casa para que a visita fosse possível partilhava que um dos poucos constrangimentos que sente é ter dificuldade em gerir a sua agenda para conseguir participar em todas as atividades que são propostas!
Esta sua partilha foca bem a importância de os ambientes serem estruturados e pensados com consciência e respeito por quem se cuida, recupera e/ou evita um estado emocional que é muitas vezes o primeiro obstáculo quando se abordam questões da/na “velhice”.
Quando é perguntado a estes “Cidadãos de Todos Nós” o que os leva a querer sair da sua casa e optarem por uma resposta social, uma das respostas “salta à vista” como lembrete de que existem tempos e vontades que, antes de tudo, precisam de ser respeitadas. Rino, de 83 anos, diz: “PER ARRIVARE QUI BISOGNA ESSERE PREPARATI” (Para chegar aqui tens de estar preparado). A esta verdade e reconhecimento de que quer ter e ser voz, juntam-se outras vozes com vontades legítimas – o não querer ficar nem se sentir sozinho/a, o medo e ansiedade pelo inesperado (relacionado com os problemas de saúde que surgem ou podem surgir), o querer estabelecer relações de confiança (nomeadamente com profissionais de saúde), o não se sentir um “fardo” para os filhos/família, o ser capaz de decidir sobre a sua vida de forma autónoma, a possibilidade de se relacionar com a vizinhança. É fundamental que se perceba que é urgente olhar-se para esta faixa etária de forma contextualizada no seu tempo, nas suas vivências histórico-geográficas, ter presente que algumas expetativas possam sair defraudadas, que a forma como cada cuidador se apresenta tem impacto direto e imediato em quem cuida.
Para visitar algumas infraestruturas deste projeto megalómano, o caminho faz-se a pé pela cidade. A calma, as ruas cuidadas, o apelo constante para que se respeite o meio ambiente, o fazer da bicicleta o meio de transporte por excelência com condições criadas para esse fim, leva a que a cada passo dado se reflita de que forma esta sensação de tranquilidade abre horizontes para um sentir do outro e do que nos envolve de forma mais livre e emocionalmente transparente.
Chegados à Residenza G. Menegazzi, onde a dependência do outro, as demências estão presentes, essa calma, cuidado e o respeito que tanto aqui têm sido referidos entram pela porta de vidro, sobem as escadas e ali ficam. Nos jardins que envolvem todo o edifício existe harmonia, preocupação no cuidado e, nesse ambiente, é partilhado algo extraordinário. Os jardins são construídos de forma a que quem usufrui deles o possa fazer sem que lhes cause maior confusão, permitindo que sejam capazes de se orientar, sem intensificar perdas de noção espacial. Este olhar faz toda a diferença. Permitir que cada um encontre o seu lugar, mesmo que, algumas vezes, o seu mundo interior possa estar mais confuso. Nesse jardim, uma casinha pequena é morada para livros. Livros que ali ficam à disposição de quem os quiser procurar. E a presença dos livros vai muito além deste jardim. Dentro do edifício principal, vários armários dispostos pela sala contêm livros, assim como o são também presença no CoHousing, nas salas comuns, com sofás ou cadeirões junto aos armários que os acolhem, permitindo que as viagens continuem a ser feitas.
Seja em Billund ou em Treviso, sejam miúdos ou graúdos, a verdade é que existe no livro um mundo cheio de aventuras e viagens que podem ser feitas ali mesmo. É apenas permitir que essa viagem seja feita através dos sentidos. E sentir não tem idade.
Sentir, envolver-se no acreditar em si e no que é capaz de ser e (ainda) fazer, e sentir-se envolvido em respeito; pertencer, independentemente da forma como vê o mundo; acreditar que pode (continuar a) ter voz sem censuras e sentir segurança em cada passo que se dá.
No projeto DRIVE, diz-se: “The easiest way to foster relatedness is a smile and simple appreciation” (a maneira mais fácil de promover o relacionamento é um sorriso e uma simples apreciação). O bem-estar mental/emocional tem implicações diretas na saúde física de cada um. Um sorriso é simples de ser transportado e traz em si toda uma (re)construção do outro, e disponibilidade e segurança para o outro. “I LIVE FREE UNDER A BELL” (Eu vivo livre sob um sino), expressão que um senhor utilizou para explicar o que sente ao viver num apartamento do CoHousing – esta liberdade só consegue ser proporcionada quando os cuidadores se entregam e se disponibilizam.
Nesta partilha de experiências além-fronteiras, cada um trará em si e para si uma verdade, uma forma de olhar e percecionar o que sentiu em cada lugar, em cada encontro.
E nessa diversidade surge o enriquecimento destes momentos. O de se poder ser, também, livre de poder aceitar ou não o que se viu, mas, acima de tudo, ter em cada um o sentimento de responsabilidade, de reflexão e de crítica para que os horizontes sejam mais abrangentes e o rigor no cuidado seja sempre a prioridade.
Cuidar implica o semear de empatia pelo outro, respeito pela individualidade, pelo contexto e pela sua identidade. Cuidar é dignificar a voz interior de cada um.

Ana Nicolau.

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